A Filha do Imperador de Jade

Author: Luiza / Marcadores: , , , , , , , , ,

Eis aqui um conto sobre uma lenda do Folclore Chinês, tirado do livro "Lendas do Celeste Império", da autora Chaing Sing (pseudônimo da escritora Glycia Modesta de Arroxellas Galvão).


O camponês foi até a porta da cabana e abriu-a. Apoiou-se num longo cajado de bambu para firmar os passos. Sua tez era macilenta como o couro velho. Os cabelos brancos formavam uma trança rala que lhe caía pelas costas. Usava uma cabaia azul e umas calças desbotadas pelo uso.
Olhou através da fria chuva outonal e viu a terra nua e desolada. Era uma lúgubre aldeia de campos negros. Ao longe uivavam manadas de lobos famintos. As últimas inundações tinham destruído a maioria das casas e as colheitas. O povo e os rebanhos morriam de fome e de peste. Desolado, Yang viu tudo aquilo sem saber o que fazer. Não tinha meios nem forças. Todos os seus parentes e amigos tinham partido para o país da relva. A vida para ele era como um peso a suportar.
Contudo, Yang sabia viver duas vezes as coisas que o faziam sonhar: a primeira quando era atingido por elas, a segunda quando o efeito já tinha passado. Voltou a pensar nos netos que antes aquietavam-se junto dele para ouvir velhos contos de fadas. E recordou os festejos de San Nin - o Ano-Novo, quando juntos queimavam incenso Saliva de Dragão no Templo dos Deuses da Cidade; os foguetes e as aves fantásticas de papel e bambu que as crianças da aldeia soltavam no céu e faziam revoar graciosamente, acionando-as com as mãozinhas. A alegria com que ele cortava galhos de pessegueiro para armar a árvore da felicidade. Colocar um galho da felicidade acima da porta principal da casa era um velho costume tradicional usado nas ocasiões festivas. E no galho de pessegueiro ele pendurava as vinte e uma coisas preciosas, entre as quais havia: uma carpa dourada, símbolo da coragem; uma rodinha de foguete, símbolo da Festa das Duas Estrelas; dois bonequinhos, que eram o deus da felicidade com um saco de pedras preciosas eternamente cheio e o deus da abundância; um cofrezinho, símbolo dos bons negócios; uma chavinha que abria todos os tesouros; um dado da boa sorte; uma pluminha branca simbolizando o manto da Princesa Cisne, que confere a invisibilidade em casos de perigo; contas de vidro, guizos, fitinhas vermelhas - a cor da alegria - moedas de papel dourado, símbolo da prosperidade, e tantas outras coisas!
Naquela época os campos eram fecundos. A cerejeira tinha frutos tão vermelhos e em tão grande quantidade que as árvores pareciam trajar mantos de púrpura. Os pêssegos e as laranjas eram como frutos de ouro. As colmeias instaladas no oco dos pinheiros eram tão fartas, que escorria mel pelos troncos.
Soltou um longo suspiro e velhas lágrimas voltaram a ser semente nos seus olhos. Sabia que as emoções não se parecem, mas o importante é estar emocionado. Conservou-se alheio e silencioso, cheio de sentimentos e pensamentos contraditórios. Haveria para além desta outra vida? Haveria depois da morte consolação para os que sofreram?
Estas perguntas o martirizavam sem cessar. Ergueu o olhar para o céu como faz um homem doente, nele cravando os olhos encovados. Suas pernas arquearam e largando o cajado ele se ajoelhou com a cabeça de encontro à terra úmida. Começou a orar com fervor. Sua prece era cheia de súplicas comoventes. As palavras elevaram-se pelo azul numa ascensão sublime, roçaram as nuvens, tocaram o sol, desenharam no ar apelos ardentes.
No Paraíso Ocidental, Kuan Yin, a filha do Imperador de Jade, cessou de tocar o alaúde. Inclinou-se sobre as nuvens e contemplou a Terra. Em toda parte viu fome e miséria. Comovida ante tanto sofrimento decidiu ajudar aquela pobre gente.
E quando Yang ergueu a cabeça, Kuan Yin estava diante dele. Flutuavam numa auréola de luz muito suave. Vaporosa túnica resplandecente a envolvia. O rosto lindo refletia bondade e mansidão infinitas.
   - Kuan Yin! - murmurou ele, estremecendo por se encontrar tão perto da divindade.
Sons dulcíssimos, não de palavras, mas de sentido compreensível, assim deram a perceber:
   -Yang, nós conduzimos dentro de nós o culto da divindade. E sempre que alguém reza com fé, tal como fizeste, um mensageiro divino atende o seu apelo de acordo com o merecimento de cada ser.
Perplexo, o velho contemplava a deusa luminosa e diáfana. De novo sentiu a comunicação telepática.
   - Seu nome já foi escrito no Livro da Vida e da Morte. Portanto, tranquiliza-te e ora. O pássaro da eternidade irá conduzir-te para onde deves ir!
E a visão foi empalidecendo até fundir-se no ar. Trêmulo de emoção, Yang continuou ajoelhado. Tinha a certeza de que nenhuma frustração é definitiva, há sempre um imprevisto apaziguante quando tudo aparece perdido.
Ergueu-se devagar e entrou na cabana. Animava-lhe o rosto uma esperança incontida num acontecimento venturoso.

Naquele fim de tarde, Kuan Yin percorreu a China de um extremo a outro. Era a época dos Reinos Combatentes. O Império do Meio estava mergulhado nos horrores da guerra. A deusa seguiu pensativa, flutuando pelos caminhos desertos. Alcançou uma floresta. Os troncos arrancados pela força da inundação do rio Amarelo jaziam trombados tristemente. Kuan Yin soltou um suspiro e olhou em volta. Seus olhos pousaram na plantinha do arroz. Era uma erva insignificante, com espigas vazias que antes nunca tiveram grão. Passava as horas ociosamente brincando com a brisa. Curvando-se, a deusa abriu a túnica luminosa e desnudou os seios fartos. Começou então a fluir o Leite da Vida que ela deixou cair gota a gota sobre as espigar estéreis. Porém, ao cabo de uns momentos, sentiu-se exausta e implorou aos Imortais que lhe enviassem umas gotas mais.
Deu-se o milagre: algumas gotas de seu divino sangue se misturaram ao leite. E as espigas ficaram cheias de grãos brancos como o Leite da Vida. Mas alguns eram vermelhos como o sangue de Kuan Yin. Então, a deusa pediu à planta que produzisse bastante alimento para o povo necessitado e voltou á morada celestial, contente com o bem que havia feito naquele dia..
Na manhã seguinte quando Yang abriu a porta ficou deslumbrado. Seu coração bateu descompassadamente.
   - Quê! Ser-me dado a mim, tão velho, ver este milagre!
Cada ruga do seu rosto começou a tremer e seus olhos encheram-se de lágrimas. A terra estava reflorida. Os pássaros cantavam. As borboletas evoluíam por entre os verdes rebentos dos bambus e o ouro dos crisântemos. Mais além, na terra coberta de água, viu a planta do arroz com as espigas cheias.
Yang teve a impressão de que estava cercado de uma atmosfera sobrenatural. De repente, sentiu que lhe pairava acima da cabeça um ser vivo. Ergueu os olhos e viu um cisne branco de grandes asas sedosas. Empurrado por uma força oculta, ele montou às costas do cisne. E a bela ave levou-o pelo espaço, subindo sempre. Ele sentiu-se leve, jovem outra vez. Constatou que a morte não era o fim de tudo, mas sim o começo de outra vida em outros mundos de paisagens inéditas. Vinham sons suavíssimos de muito longe. Era um canto semelhante a um murmúrio muito doce. Estava tão perto do coro celestial que pôde ver aparições radiosas. E, súbito, o cisne mergulhou em poças de ar azul, penetrando na amplidão sem fim...

Hoje em dia a pequena aldeia onde viveu Yang é uma povoação cheia de vida e movimento. Do velho lavrador não resta nem mesmo uma lembrança; mas em muitos lugares da China o incenso ainda continua sendo queimado diante da imagem de Kuan Yin, a mãe da misericórdia e do conhecimento.



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