Eis aqui um conto sobre uma lenda do Folclore Chinês, tirado do livro "Lendas do Celeste Império", da autora Chaing Sing (pseudônimo da escritora Glycia Modesta de Arroxellas Galvão).
Olhou através da fria chuva outonal e viu a terra nua e desolada. Era uma lúgubre aldeia de campos negros. Ao longe uivavam manadas de lobos famintos. As últimas inundações tinham destruído a maioria das casas e as colheitas. O povo e os rebanhos morriam de fome e de peste. Desolado, Yang viu tudo aquilo sem saber o que fazer. Não tinha meios nem forças. Todos os seus parentes e amigos tinham partido para o país da relva. A vida para ele era como um peso a suportar.
Contudo, Yang sabia viver duas vezes as coisas que o faziam sonhar: a primeira quando era atingido por elas, a segunda quando o efeito já tinha passado. Voltou a pensar nos netos que antes aquietavam-se junto dele para ouvir velhos contos de fadas. E recordou os festejos de San Nin - o Ano-Novo, quando juntos queimavam incenso Saliva de Dragão no Templo dos Deuses da Cidade; os foguetes e as aves fantásticas de papel e bambu que as crianças da aldeia soltavam no céu e faziam revoar graciosamente, acionando-as com as mãozinhas. A alegria com que ele cortava galhos de pessegueiro para armar a árvore da felicidade. Colocar um galho da felicidade acima da porta principal da casa era um velho costume tradicional usado nas ocasiões festivas. E no galho de pessegueiro ele pendurava as vinte e uma coisas preciosas, entre as quais havia: uma carpa dourada, símbolo da coragem; uma rodinha de foguete, símbolo da Festa das Duas Estrelas; dois bonequinhos, que eram o deus da felicidade com um saco de pedras preciosas eternamente cheio e o deus da abundância; um cofrezinho, símbolo dos bons negócios; uma chavinha que abria todos os tesouros; um dado da boa sorte; uma pluminha branca simbolizando o manto da Princesa Cisne, que confere a invisibilidade em casos de perigo; contas de vidro, guizos, fitinhas vermelhas - a cor da alegria - moedas de papel dourado, símbolo da prosperidade, e tantas outras coisas!
Naquela época os campos eram fecundos. A cerejeira tinha frutos tão vermelhos e em tão grande quantidade que as árvores pareciam trajar mantos de púrpura. Os pêssegos e as laranjas eram como frutos de ouro. As colmeias instaladas no oco dos pinheiros eram tão fartas, que escorria mel pelos troncos.
Soltou um longo suspiro e velhas lágrimas voltaram a ser semente nos seus olhos. Sabia que as emoções não se parecem, mas o importante é estar emocionado. Conservou-se alheio e silencioso, cheio de sentimentos e pensamentos contraditórios. Haveria para além desta outra vida? Haveria depois da morte consolação para os que sofreram?
Estas perguntas o martirizavam sem cessar. Ergueu o olhar para o céu como faz um homem doente, nele cravando os olhos encovados. Suas pernas arquearam e largando o cajado ele se ajoelhou com a cabeça de encontro à terra úmida. Começou a orar com fervor. Sua prece era cheia de súplicas comoventes. As palavras elevaram-se pelo azul numa ascensão sublime, roçaram as nuvens, tocaram o sol, desenharam no ar apelos ardentes.
No Paraíso Ocidental, Kuan Yin, a filha do Imperador de Jade, cessou de tocar o alaúde. Inclinou-se sobre as nuvens e contemplou a Terra. Em toda parte viu fome e miséria. Comovida ante tanto sofrimento decidiu ajudar aquela pobre gente.
E quando Yang ergueu a cabeça, Kuan Yin estava diante dele. Flutuavam numa auréola de luz muito suave. Vaporosa túnica resplandecente a envolvia. O rosto lindo refletia bondade e mansidão infinitas.
- Kuan Yin! - murmurou ele, estremecendo por se encontrar tão perto da divindade.
Sons
dulcíssimos, não de palavras, mas de sentido compreensível, assim deram a
perceber:
-Yang, nós conduzimos dentro de nós o culto da divindade. E sempre que
alguém reza com fé, tal como fizeste, um mensageiro divino atende o seu apelo
de acordo com o merecimento de cada ser.
Perplexo, o
velho contemplava a deusa luminosa e diáfana. De novo sentiu a comunicação
telepática.
-
Seu nome já foi escrito no Livro da Vida e da Morte. Portanto, tranquiliza-te e
ora. O pássaro da eternidade irá conduzir-te para onde deves ir!
E a visão foi
empalidecendo até fundir-se no ar. Trêmulo de emoção, Yang continuou ajoelhado.
Tinha a certeza de que nenhuma frustração é definitiva, há sempre um imprevisto
apaziguante quando tudo aparece perdido.
Ergueu-se
devagar e entrou na cabana. Animava-lhe o rosto uma esperança incontida num
acontecimento venturoso.
Naquele fim de tarde, Kuan Yin percorreu a China de um extremo a outro. Era a época dos Reinos Combatentes. O Império do Meio estava mergulhado nos horrores da guerra. A deusa seguiu pensativa, flutuando pelos caminhos desertos. Alcançou uma floresta. Os troncos arrancados pela força da inundação do rio Amarelo jaziam trombados tristemente. Kuan Yin soltou um suspiro e olhou em volta. Seus olhos pousaram na plantinha do arroz. Era uma erva insignificante, com espigas vazias que antes nunca tiveram grão. Passava as horas ociosamente brincando com a brisa. Curvando-se, a deusa abriu a túnica luminosa e desnudou os seios fartos. Começou então a fluir o Leite da Vida que ela deixou cair gota a gota sobre as espigar estéreis. Porém, ao cabo de uns momentos, sentiu-se exausta e implorou aos Imortais que lhe enviassem umas gotas mais.
Deu-se o
milagre: algumas gotas de seu divino sangue se misturaram ao leite. E as
espigas ficaram cheias de grãos brancos como o Leite da Vida. Mas alguns eram
vermelhos como o sangue de Kuan Yin. Então, a deusa pediu à planta que
produzisse bastante alimento para o povo necessitado e voltou á morada
celestial, contente com o bem que havia feito naquele dia..
Na manhã
seguinte quando Yang abriu a porta ficou deslumbrado. Seu coração bateu
descompassadamente.
-
Quê! Ser-me dado a mim, tão velho, ver este milagre!
Cada ruga do seu
rosto começou a tremer e seus olhos encheram-se de lágrimas. A terra estava
reflorida. Os pássaros cantavam. As borboletas evoluíam por entre os verdes
rebentos dos bambus e o ouro dos crisântemos. Mais além, na terra coberta
de água, viu a planta do arroz com as espigas cheias.
Yang teve a
impressão de que estava cercado de uma atmosfera sobrenatural. De repente,
sentiu que lhe pairava acima da cabeça um ser vivo. Ergueu os olhos e viu um
cisne branco de grandes asas sedosas. Empurrado por uma força oculta, ele
montou às costas do cisne. E a bela ave levou-o pelo espaço, subindo sempre.
Ele sentiu-se leve, jovem outra vez. Constatou que a morte não era o fim de
tudo, mas sim o começo de outra vida em outros mundos de paisagens inéditas.
Vinham sons suavíssimos de muito longe. Era um canto semelhante a
um murmúrio muito doce. Estava tão perto do coro celestial que pôde
ver aparições radiosas. E, súbito, o cisne mergulhou em poças de ar azul,
penetrando na amplidão sem fim...
Hoje em dia a
pequena aldeia onde viveu Yang é uma povoação cheia de vida e movimento. Do
velho lavrador não resta nem mesmo uma lembrança; mas em muitos lugares da
China o incenso ainda continua sendo queimado diante da imagem de Kuan Yin, a
mãe da misericórdia e do conhecimento.
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