Barba Ruiva - Folclore Brasileiro

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Imagem produzida pelo Instituto Oswaldo Cruz, Piauí, 1912

 Aqui está a Lagoa de Parnaguá, limpa como um espelho e bonita como noiva enfeitada.

  Espraia-se por quinze quilômetros por cinco de largura, mas não era, tempo antigo, assim grande, poderosa como um braço de mar. Cresceu por encanto, cobrindo mato e caminho, por causa do pecado dos homens. 

  Nas Salinas, ponta leste do povoado de Parnaguá, vivia uma viúva com três filhas. O rio Fundo caía numa lagoa pequena no meio da várzea.

  Um dia, não se sabe como, a mais moça das filhas da viúva adoeceu e ninguém atinava com a moléstia. Ficou triste de pensativa. 

  Estava esperando menino e o namorado morrera sem ter ocasião de levar a moça ao altar.

  Chegando o tempo, descansou a moça nos matos e, querendo esconder a vergonha, deitou o filhinho num tacho de cobre e sacudiu-o dentro da lagoa. 

  O tacho desceu e subiu logo, trazido por uma Mãe d’Água, tremendo de raiva na sua beleza feiticeira. Amaldiçoou a moça que chorava e mergulhou.


Ilustração por Jô Oliveira

  As águas foram crescendo, subindo e correndo, numa enchente sem fim, dia e noite, alagando, encharcando, atolando, aumentando sem cessar, cumprindo uma ordem misteriosa. Tomou toda a várzea, passando por cima das carnaubeiras e buritis, dando onda como maré de enchente na lua. 

  Ficou a lagoa encantada, cheia de luzes e de vozes. Ninguém podia morar na beira porque, a noite inteira, subia do fundo d’água um choro de criança, como se chamasse a mãe para amamentar. 

  Ano vai e ano vem, o choro parou e, vez por outra, aparecia um homem moço, airoso, muito claro, menino de manhã, com barbas ruivas ao meio dia e barbado de branco ao anoitecer.

  Muita gente o viu e tem visto. Foge dos homens e procura as mulheres que vão bater roupa. Agarra-as só para abraçar e beijar. Depois, corre e pula na lagoa, desaparecendo.

  Nenhuma mulher bate roupa e toma banho sozinha, com medo do Barba Ruiva. Homem de respeito, doutor formado, tem encontrado o Filho-da-Mãe-D’água, e perde o uso de razão, horas e horas.

  Mas o Barba-Ruiva não ofende a ninguém. Corre sua sina nas águas da lagoa de Parnaguá, perseguindo mulheres e fugindo dos homens.

  Um dia desencantará, se uma mulher atirar na cabeça dele água benta e um rosário indulgenciado. Barba-Ruiva é pagão, e deixa de ser encantado sendo cristão.

  Mas não nasceu ainda essa mulher valente para desencantar o Barba-Ruiva.

  Por isso ele cumpre sua sina nas águas claras da lagoa de Parnaguá.


  




   Fonte:


  CASCUDO, Luís da Câmara. Lendas Brasileiras para Jovens. São Paulo: Global Editora, 2015.

Os Quarenta Tesouros - Conto Persa

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Uma vez, na cidade real de Isfahan*, vivia um jovem chamado Ahmed, que tinha uma esposa chamada Jamell. Ele não sabia nenhum tipo de técnica e não possuía nenhuma habilidade, mas ele tinha uma pá e uma picareta - e assim como ele sempre dizia à sua esposa: “se você puder cavar buracos, você sempre pode ganhar o bastante para sobreviver”. 

  Isso era o bastante para Ahmed, mas não era o bastante para Jamell.

  Uma vez, assim como sempre fazia, Jamell foi a casa de banho da cidade para banhar-se na piscina quente e conversar com outras mulheres. Mas na entrada, a recepcionista lhe disse: “você não pode entrar agora, a esposa do vidente real do Rei reservou o lugar todo só para ela”. 

  “Quem ela pensa que é?!”, protestou Jamell. “Só porque o marido dela prevê o futuro!”. Mas tudo o que ela pode fazer foi voltar para casa furiosa.

  Naquela noite, quando Ahmed foi lhe entregar seus ganhos do dia, ela disse: “olhe só para essa mixaria! Não posso mais suportar esta situação. Amanhã, você se sentará em meio a feira e vai ser um vidente!”. 

  “Jamell, você está louca?” perguntou Ahmed. “Eu não sei nada sobre prever o futuro!”.

  “Você não precisa saber de nada”, disse Jamell. “Quando qualquer um vier lhe perguntar algo, você apenas joga os dados e murmura alguma coisa que soe inteligente. É isso, ou eu vou embora para a casa do meu pai!”.


  Então, no dia seguinte, Ahmed vendeu sua pá e sua picareta, comprou dados, uma tábua, um robe de vidente, e sentou-se em meio a feira, ao lado da casa de banho.

  Mal havia ele acabado de se estabelecer no local e já vinha correndo para ele a esposa de um dos ministros do Rei.

  “Vidente, você precisa me ajudar! Eu estava usando o meu anel mais precioso para vir ao banho hoje, e agora eu o perdi! Por favor, diga-me onde está!”.



  Ahmed engoliu seco e jogou os dados. Enquanto ele pensava desesperadamente em algo inteligente para dizer, ele acabou por observar as vestes da mulher. Percebeu que tinha uma pequena fenda, e por ela dava-se para ver parte de seu braço. 

  No Oriente Médio daquela época, aquilo era considerado impróprio para uma mulher respeitável, então Ahmed se inclinou para frente e sussurrou discreta e urgentemente: “senhora, eu vejo uma fenda”.

  “O quê?”, perguntou a mulher, se inclinando para frente.

  “Uma fenda! Uma fenda”.

  A mulher então entendeu. “Claro! Uma fenda!”.

  Ela correu de volta para a casa de banho e encontrou a fenda na parede na qual ela havia escondido seu anel para mantê-lo protegido e o esqueceu. Então ela voltou para onde estava Ahmed.

  “Deus seja louvado!”, disse ela. “Você sabia exatamente onde ele estava!”. E para a surpresa de Ahmed, ela lhe deu uma moeda de ouro.

  Naquela noite, quando Jamell viu a moeda e ouviu a história, disse: “Viu? É simples!”

  “Deus foi misericordioso hoje!”, disse Ahmed, “mas não ouso testá-lo outra vez!”.

  “Bobagem!”, disse Jamell. “Se você quer continuar casado, você voltará à feira amanhã”.


  Acontece que naquela mesma noite, os tesouros do palácio do Rei foram roubados. Quarenta pares de mãos roubaram quarenta baús de ouro e jóias.

  O roubo foi relatado para o Rei na manhã seguinte. “Tragam-me o vidente Real e seus assistentes”, comandou o Rei.

  Porém, por mais que o vidente e seus assistente jogassem os dados e murmurassem palavras sábias, nenhum deles pôde localizar nem o tesouro e nem os ladrões.

  “Fraudes!”, gritou o Rei, “joguem todos na cadeia!”.

  O Rei havia então ouvido falar sobre o vidente que recuperou o anel da esposa de um de seus ministros, por isso enviou para a feira dois guardas com a ordem de trazer Ahmed, que apareceu tremendo em seu palácio.

  “Vidente”, disse o Rei, “40 baús contendo o meu tesouro foram roubados. O que você pode me dizer a respeito dos ladrões?”.

  Ahmed pensou rapidamente sobre 40 baús sendo levados embora. “Sua Majestade, eu posso dizer-lhe que foram… 40 ladrões.”

  “Incrível!”, disse o Rei, “nenhum dos meus adivinhos sabia tanto! Mas agora você precisa encontrar os ladrões e o tesouro.”

  Ahmed sentiu que iria desmaiar. “Farei o meu melhor, Sua Majestade, mas… mas, vai levar algum tempo”.

  “Quanto tempo?”, perguntou o Rei.

  “Hmm, 40 dias, Sua Majestade”, disse Ahmed, pensando o máximo que conseguia. “Um dia para cada ladrão”.

  “Bastante tempo!”, disse o Rei. “Pois bem, então você terá 40 dias. Se conseguir, eu o farei rico. Se não, você apodrecerá com os outros na prisão!”.


  De volta em casa, Ahmed disse a Jamell: “vê o problema que você nos causou? Em quarenta dias, o Rei irá me prender!”

  “Bobagem!”, disse Jamell. “Apenas encontre os ladrões assim como encontrou o anel.”

  “Eu já te disse, Jamell, eu não encontrei nada! Aquilo foi apenas pela graça de Deus, mas desta vez não há esperança!”.

  Ahmed trouxe algumas tâmaras secas, contou quarenta, e as colocou em um jarro. “Vou comer uma dessas tâmaras a cada noite, pois isso me dirá quando os meus quarenta dias acabarão.”


  Acontece que um dos empregados do Rei era um dos ladrões, e ele havia ouvido o Rei conversar com Ahmed. Naquela mesma noite, ele correu para o local de encontro dos ladrões e contou tudo para o chefe do bando. “Há um vidente que diz que vai encontrar os tesouros e os ladrões em quarenta dias!”

  “Ele está blefando!”, disse o chefe. “Mas não podemos pagar pra ver. Vá para a casa dele e veja o que pode descobrir.”

  Então o empregado escalou a casa de Ahmed e subiu até o terraço, no telhado plano, e ficou à escuta ao lado da escada que dava para o andar de baixo. No mesmo instante, Ahmed pegou uma tâmara do jarro e comeu. Ele disse à Jamell: “Este é um.”

  O empregado ficou tão chocado que quase caiu escada abaixo. Ele correu de volta para o local de encontro dos ladrões e disse ao chefe: “esse vidente tem poderes magníficos! Sem ao menos me ver ele sabia que eu estava no telhado! Eu o ouvi dizer claramente ‘este é um’.”

  “Deve ser apenas a sua imaginação”, disse o chefe. “Amanhã à noite dois de vocês irão lá.”


  Então, na noite seguinte o empregado retornou a casa de Ahmed junto com um dos outros ladrões. Ao se posicionar ao lado da escada, Ahmed comeu a segunda tâmara e disse: “agora são dois”.

  Os ladrões quase tropeçaram um no outro ao descer do telhado e correr de volta para o local de encontro dos ladrões. “Ele sabia que havia dois de nós!”, disse o empregado. "Nós o escutamos dizer ‘agora são dois’!”.

  “Não pode ser!”, disse o chefe. Então na noite seguinte, ele mandou três dos ladrões, e na próxima noite quatro, depois cinco, depois seis.

  E assim foi até a quadragésima noite, quando o chefe disse, “desta vez, eu mesmo vou com vocês”. Então todos os quarenta ladrões escalaram o telhado de Ahmed para ficar à escuta.


  Dentro da casa, Ahmed olhou tristemente para a última tâmara do jarro, a pegou e comeu. “São quarenta. Agora o número está completo”. (Ahmed se referia ao número de dias que correspondiam ao número de tâmaras, mas claro, disso os ladrões não sabiam).

  Jamell sentou-se ao seu lado e gentilmente pegou sua mão. “Ahmed, durante estes quarenta dias, eu tenho pensado. Eu estava errada em fazer você ser um vidente. Você é o que é, e eu não deveria ter tentado fazer você ser o que não é. Você pode me perdoar?”.

  “Eu te perdoo, Jamell, mas a culpa é minha também. Eu não deveria ter feito o que eu sabia que não era certo. Mas nada disso pode nos ajudar agora.”

  No mesmo instante houveram batidas estrondosas na porta.


  Ahmed suspirou. “Devem ser os guardas do Rei!”. Ele foi até a porta, a destrancou e disse: “Tudo bem, tudo bem. Eu sei o porquê vocês estão aqui”.

  Porém, quando ele abriu a porta, para sua surpresa, encontrou quarenta homens ajoelhados diante dele, tocando o chão com a cabeça repetidamente.

  “É claro que você sabe, ó grande vidente!”, disse o chefe. “Nada pode ser escondido de ti. Mas nós imploramos para que não nos entregue!”.

  Perplexo como estava, Ahmed percebeu que aqueles deveriam ser os ladrões. Pensou rápido e disse: “muito bem, eu não vou entregar vocês. Mas vocês devem devolver todos os itens do tesouro”. 

  “Neste instante, neste instante!”, jurou o chefe dos ladrões.

   E antes do fim da noite, quarenta pares de mãos levaram quarenta baús de ouro e jóias de volta para a tesouraria do Rei.


  Bem cedo na manhã seguinte, Ahmed apareceu perante o Rei. “Sua Majestade, minha mágica só consegue encontrar ou o tesouro ou os ladrões, mas não ambos. Qual você escolhe?”. 

  “O tesouro, eu acho…”, disse o Rei, “porém é uma pena que os ladrões não possam ser encontrados. O óleo fervente está todo pronto esperando por eles. Bem, não importa. Diga-me onde está o tesouro, e eu mandarei os meus homens para buscá-lo.”

   “Não será preciso, Sua Majestade”. Ahmed balançou os braços pelo ar e disse: “Pish posh, wish wosh, mish mosh”. Então disse, “pela minha magia, o tesouro retornou ao seu devido lugar”. 

  O próprio Rei foi com Ahmed até a tesouraria e lá estava o tesouro. “Você realmente é o melhor vidente desta era!”, declarou o Rei. “Deste dia em diante, você será o meu Vidente Real!”. 

  “Obrigado, Sua Majestade”, disse Ahmed com uma reverência, “mas temo que seja impossível. Achar e restaurar o seu tesouro foi tão difícil que esgotou todos os meus poderes. Eu posso nunca mais ser um vidente outra vez.”

  “Que lástima!”, lamentou o Rei. “Então eu devo duplicar sua recompensa. Aqui, leve estes dois baús de tesouro para você”.

  Então Ahmed retornou para casa e para Jamell, a salvo, rico, e sendo um ótimo negociador. E assim como qualquer vidente poderia prever, foram felizes para sempre. 




  

*Isfahan foi declarada a capital do Irã no ano de 1598 pelo Shah Abbas o Grande, e permaneceu com este nome durante um século. Sob o poder de Abbas, a cidade se tornou conhecida como uma das mais bonitas do mundo, e se tornou o maior centro internacional de comércio e artes. Este período é considerado a Era de Ouro da cultura Persa. Pérsia é o antigo nome da região que hoje é o Irã.

  



   Fonte: SHEPARD, Aaron. Forty Fortunes: A Tale of Iran. Nova York: Clarion Books, 1999.