Fênix de Ouro

Author: Luiza / Marcadores: , , , , , , , , , , , ,

Eis aqui outro conto de uma lenda do Folclore Chinês, tirado do livro "Lendas do Celeste Império", da autora Chaing Sing (pseudônimo da escritora Glycia Modesta de Arroxellas Galvão).
Já avisando aos leitores que Fênix de Ouro é o nome de uma moça, filha do mandarim Tsu. E nesse conto não há menção sobre a ave mitológica Fênix. Mesmo assim o conto é bem interessante!



  O Bonzo subiu lentamente as escadas de mármore que conduziam à Torre Ocidental. Seco como um pergaminho, em sua cabeça rapada viam-se as sete tatuagens do ritual religioso. Abriu a pesada porta de cedro e olhou o Grande Sino Dourado. Aproximou-se e com um martelo golpeou as bordas gigantescas que tinham textos búdicos gravados. O som cristalino se espalhou pelo céu de porcelana. A onda sonora fazia estremecer os pequenos dragões verdes que vigiavam as pontas recurvas dos telhados de laca. As cornijas esculpidas vibravam também suas inumeráveis campainhas chamando os fiéis para a hora da quinta prece.
  Depois de cada golpe, como era sonoro o sino e seus ecos, formando prolongada queixa dourada! Aos poucos a sonoridade imensa se extinguiu e um misterioso gemido feminino murmurou:
   - Ai!...
  O bonzo contemplou o sino com piedade infinita. Soltou um suspiro, fechou a porta e saiu em direção ao Santuário da Purificação. Nem ele nem o povo de Pequim ignorava o estranho sortilégio daquele sino. Sua história data de muitos séculos. Num velho alfarrábio guardado na biblioteca do Templo, lê-se o seguinte:


  Na época do imperador Yung-Lo viveu um alto magistrado chamado Tsu. Era mandarim do sétimo grau. Em seu barrete de cetim ostentava a pena de pavão e o botão de jade conferido pelo Filho do Céu. Pertencia à Academia Floresta de Pincéis, onde só eram admitidos grandes letrados. Um dia ele foi chamado à corte. O soberano ordenou que ele reunisse especialistas e mandasse fundir um grande sino. Queria, ademais, que se juntasse cobre ao metal para que o som fosse poderoso; ferro para que fosse firme; ouro para que fosse profundo e prata para que ficasse puro e cristalino. E que depois o colocassem no centro de Pequim.
  Tsu saiu do palácio pensativo. Seu coração temia pela sorte dos operários, caso a encomenda real não ficasse perfeita. Há pouco, Yung-Lo estivera prestes a sacrificar dez mil homens inocentes. Isto, apenas porque alguém lhe disse que, se os enterrasse vivos ao pé da Grande Muralha em construção, ela se manteria firme dez mil anos. Cuidadosamente Tsu persuadiu o Imperador a sacrificar apenas um bezerro, cujo nome é Wan... que em chinês quer dizer dez mil.
  Após reunir os trabalhadores, Tsu começou os preparativos para fundir o grande sino. Levaram enormes vasilhas de cobre para o Vale das Águas Rodopiantes. Prepararam cuidadosas proporções dos metais destinados a formarem a liga. Trabalharam sem cessar durante muitos dias. Contudo, uma vez fundidos os metais, assim que os separaram do molde de areia, o resultado foi lamentável. Os metais tinham se sublevado uns contra os outros; o ouro tinha se aliado com o cobre, a prata tinha se negado a unir-se com o ferro. Foi preciso recomeçar tudo.
  Houve novo fracasso. Inteirado do que ocorria o soberano declarou que se não conseguissem fundir o sino, todos seriam decapitados.
  Naquela noite, Tsu regressou taciturno. A família procurou consolá-lo em vão. Sua filha Fênix de Ouro era quem mais sofria. Seu rosto cetinoso em forma de damasco cobriu-se de tristeza. Ingênua, boa e prendada, a jovem tinha um corpo frágil e delicado. Uma grossa trança negra entremeada de pérolas lhe caia pelas costas. Após breve hesitação, ela decidiu ir procurar um homem versado em artes mágicas. Logo ao amanhecer, saiu sorrateiramente e foi até a gruta imunda onde vivia o mago. Pagou-lhe bem e disse:
   - Diga-me, o que devo fazer?
  O mágico olhou os astros, examinou a Estrada Amarela do Zodíaco, consultou as vinte e oito constelações do Palácio da Lua. Afinal falou:
   - O ouro e o cobre jamais se casarão. A prata e o ferro não se abraçarão nunca para fundirem o grande sino. Contudo... há uma maneira de se conseguir isso...
   - E qual é? - indagou ela aflita.
  O rosto do velho tomou uma expressão dura e cruel. Inclinando-se, ele murmurou qualquer coisa no ouvido da jovem. Suas palavras eram formuladas numa atitude maldosa, como a de um demônio procurando negociar uma alma por meios que ele sabe serem irresistíveis. A magia havia lhe ensinado muitos processos de vencer a vontade alheia. Tomada de supersticiosa emoção, ela recuou com o coração opresso. Pálida como um lírio e mais bela que nunca, disse baixinho:
   - Sim... eu o farei...
  E erguendo-se saiu rapidamente.
  Chegando em casa não disse nada a ninguém. Viveu inquieta até o dia em que seu pai teria que fazer a nova tentativa. Na hora marcada Tsu vestiu-se e saiu. Uma rica liteira esperava-o à porta. Ele subiu, correu as cortinas de seda escarlate; e cules de rabichos soltos vestidos de algodão azul levaram-no num trote arquejante até o Vale das Águas Rodopiantes.
  Ao chegar, ele encaminhou-se para um lugar de onde avistava claramente o trabalho dos operários. A tarefa foi realizada em meio ao maior silêncio. Só se ouvia o crepitar do fogo. Este foi aumentando até se converter num espelho luzidio. Sereno, com as mãos enfiadas nas mangas da túnica de brocado verde, Tsu observava  tudo. Estava prestes a dar o sinal para que vertessem o metal fervente na grande forma, quando um grito o deteve:
   - Perdoa-me, pai, é para salvá-los!
  E Fênix de Ouro, arrastada por uma força sobrenatural, se precipitou no metal fervente. A lava rugiu ao recebê-la e saltou  num monstruoso jato. Formou um torvelinho multicor e logo uma leve fumaça. Acalmou-se aos poucos num ruído surdo.
  Houve consternação geral. Por mais que consideremos a vida e a morte como simples transformação da matéria, ficamos chocados com o regelar do sangue quente e a imobilização dos músculos vivos. Mais ainda quando a morte é tão trágica.
  Lívido de terror, o mandarim deu um grito, cambaleou e nada mais viu, senão que as forças o abandonaram, os ouvidos zumbiam e tudo girava em torno dele. Carregaram-no para casa.
  De longe, o mago contemplava a cena. Torceu as mãos esquálidas, soltou uma gargalhada satânica e murmurou:
   - Enfim... mais uma alma penada!
  Nisso, saindo dos bosques e dos pavilhões nobres, passou um bando de pombas brancas. Cada uma trazia, para as livrar das aves de rapina, um leve tubo de bambu que o ar fazia silvar. O velho voltou os olhos para o alto. Vendo naquelas aves o símbolo da pureza e da bondade, ergueu o punho fechado e amaldiçoou-as.
  Apesar da morte de Fênix de Ouro, o trabalho tinha que ser terminado. Os operários voltaram à tarefa. Não se via o menor sinal do corpo da moça. Realizou-se a fusão. E ante os olhos assombrados de todos, surgiu a forma perfeita do grande sino.
  Pouco depois tangeram o sino pela primeira vez. Seu som ressoava numa grande distância como o surdo troar das tempestades de verão. Quando calou sua voz possante, ouviram um gemido de mulher:
   - Ai!...
  Os operários entreolharam-se assustados. Um deles murmurou:
   - Será a alma de Fênix de Ouro?...


  Recordando tudo isso, o bonzo chegou ao umbral do Santuário da Purificação. Bateu na porta. E enquanto esperava, monologou:
   - Ouvi mais uma vez o gemido da infeliz moça que ainda sofre por ter abreviado a própria existência. Só o Pai Celeste pode dar ou tirar o dom da vida. Cada um de nós tem o seu papel a desempenhar no plano da evolução. Por isso não devemos tirar as pedras do caminho alheio. Caso contrário, evitaremos que os outros progridam espiritualmente através do sofrimento, pagando pecados de vidas anteriores. Quando Fênix de Ouro esgotar o seu Carma, ela será libertada. E isso, só os deuses podem prever... Que a sabedoria de Buda, penetrando-a, possa ajudar a evolução de sua alma!
  Com um suspiro, o bonzo desprendeu-se de suas divagações e entrou no santuário, fechando a porta atrás de si.

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