Há muito tempo, a noite ainda não existia na Terra. Escondida no fundo do rio, ela ficava dormindo no reino da Cobra Grande. O único que já a tinha visto, num sonho, era o pajé, numa ocasião em que havia chamado as almas dos mortos. Ninguém sabia como ela era, porque a noite não fazia parte do reino dos vivos.
Os animais também não existiam. Ainda não tinham sido criados, mas todos os objetos falavam como os homens. Os brinquedos conversavam com as crianças, e as armas com os guerreiros.
Um dia, a filha da Cobra Grande, que reinava no Grande Rio escuro, abandonou seu reino e foi viver na floresta. Ia se casar com Tacunha, o filho mais velho do cacique.
Tacunha tinha três fiéis servidores que o acompanhavam por toda a aparte. No dia do casamento, pediu a eles que o deixasse sozinho com a noiva. Quando eles foram caçar, Tacunha chamou a mulher e disse:
- Venha dormir perto de mim.
- Agora não, não é possível - disse ela. - Ainda não é noite.
O rapaz, espantadíssimo com a resposta, exclamou:
- Noite? O que é isso? Você está falando de uma coisa que não existe...
- Existe, sim - respondeu ela. - Minha mãe mantém a noite prisioneira, no fundo do Grande Rio escuro onde você me encontrou. Se quiser, peça a seus servidores para irem à procura dela. Mas eles não podem, de maneira alguma, saber o que estarão transportando. Se desobedecerem, ficarão enfeitiçados para sempre.
O rapaz chamou os servidores e lhes disse:
- Quero que vocês três partam para o reino da Cobra Grande, no Grande Rio. Digam a ela que sua filha mandou pedir o coco de tucumã* que ela está guardando com todo o cuidado desde o início dos tempos.
Ao ouvir o nome da Cobra Grande, os três começaram a tremer. Jamais alguém ousara ir até o fundo das águas escuras que cortam o inferno verde. Mas partiram, embora estivessem aterrorizados. Naquele dia, todos os barulhos da floresta pareciam assustadores. Por causa da umidade, os três estavam com o cabelo colado na cabeça. Sentiam falta de ar, não conseguiam respirar direito. De vez em quando olhavam para cima, em direção à copa das árvores, para tentar ver um pedacinho do céu, e a claridade os acalmava um pouco. Depois continuavam a caminhar pelo coração daquela floresta fechada, onde tinham de andar juntos para não de perder. Quando finalmente chegaram ao reino da Cobra Grande, ela lhes deu com imenso cuidado um grande coco de tucumã, e com sua voz ríspida e assustadora, que assobiava todas as letras, disse:
- Aqui está, podem levar. Mas prestem muita atenção e tenham cuidado. Principalmente, não deixem que o coco se abra no caminho, pois senão vocês perdem a vida no mesmo instante.
Os três servidores partiram, intrigados com as recomendações da Cobra Grande. O que poderia existir dentro daquele coco, fechado por uma resina? Temiam que lá dentro estivesse guardado um espírito, daqueles que aparecem de repente numa encruzilhada para castigar as pessoas. A não ser que fosse um espírito bom, daqueles que vêm ajudar quem está doente ou faminto... Será que era? Como poderiam saber? Só se abrissem o coco, mas a Cobra Grande proibira...
Prosseguiram, remando sem dizer uma palavra e foram ficando cada vez mais curiosos com um barulho esquisito. Dentro do coco havia alguma coisa que parecia cantar:
- Ten-ten-ten-tchi, ten-ten-ten-tchi, ten-ten-ten-tchi...
Na memória deles, agitavam-se todas as histórias que o pajé costumava contar.
- Ten-ten-ten-tchi, ten-ten-ten-tchi...
Já fazia muito tempo que estavam remando quando um dos servidores disse aos outros:
- Não aguento mais. Tenho que saber o que há dentro deste coco tucumã. Vamos abrir. Não precisamos contar a ninguém. Vou fazer um buraquinho para ver. Eu esquento bem a resina e enfio uma palhinha oca. Então olho pelo canudo e vejo o que há lá dentro. A Cobra Grande e a filha nunca vão saber.
- Não, não - protestaram juntos os outros dois servidores de Tacunha - A Cobra Grande proibiu. Disse até que perderíamos nossa vida no mesmo instante...
Ainda pareciam ouvir a voz ríspida e ameaçadora da Cobra Grande ressoando em suas cabeças. Entre os galhos das árvores que se debruçavam sobre a margem, sentiam que milhares de olhos os espiavam. Um brilho estranho os seguia, no fundo do rio escuro, desde que haviam deixado o reino da Cobra Grande.
Sem dizer mais nada, continuaram a remar.
- Ten-ten-ten-tchi, ten-ten-ten-tchi... - fazia o coco no silêncio da canoa. - Ten-ten-ten-tchi, ten-ten-ten-tchi...
O que será que havia dentro do coco? O que podia ser aquilo? O barulho estranho os fascinava cada vez mais. A curiosidade acabou ficando maior que o medo. Até os dois que antes haviam rejeitado a ideia de abrir o coco não tinham mais tanta certeza. No fundo, talvez estivessem levando um tesouro, e podia ser que a Cobra Grande só os tivesse assustado para que eles não o roubassem. Ou talvez se tratasse de um gênio benfazejo que fazia milagres e que poderia transformá-los em senhores da aldeia. Até mesmo o pajé teria de obedecê-los se a nova mágica fosse mais poderosa que a dele! A tentação era grande. A curiosidade, maior ainda. Mas nenhum dos três se decidia a pegar o coco e abri-lo.
Ao pararem alguns instantes para descansar e comer alguma coisa, avivaram o fogo que sempre levam na canoa quando viajam pelas inúmeras estradas de água que atravessam o mundo em todos os sentidos. Mas não conseguiam tirar os olhos daquele coco que cantava sem parar:
- Ten-ten-ten-tchi, ten-ten-ten-tchi, ten-ten-ten-tchi...
Subitamente, um deles, o mais jovem, não conseguiu mais resistir à tentação. Num impulso, pegou o coco e o aproximou do fogo. Pouco a pouco a resina foi derretendo, exalando um cheiro acre que foi se tornando insuportável. De repente, foram atingidos por um jato de resina, que lhes queimou os braços. Depois tudo escureceu. As árvores ao longo da margem desapareceram como se uma imensa nuvem negra tivesse caído sobre a Terra, engolindo todas elas. E essa nuvem saíra do coco!
Sobre as brasas ainda quentes, a única luz desse novo mundo de trevas, jazia o coco de tucumã, vazio.
Durante um longo tempo, os três ficaram imóveis e calados. Olhavam uns para os outros, como se quisessem saber se ainda estavam vivos. Não ousavam se mexer, com medo de apagar aquele fogo que parecia mantê-los no mundo dos vivos. Finalmente, o mais velho ousou romper o silêncio e disse:
- Estamos perdidos! A filha da Cobra grande já deve saber que nós a desobedecemos e abrimos o coco de tucumã. Ela vai nos enfeitiçar. Nossa vida está se acabando. Vamos depressa para a aldeia pedir perdão
De fato, na aldeia, a filha da Cobra Grande disse ao marido:
- Seus servidores abriram o coco mágico e deixaram a noite escapar. Vamos dormir e esperar que a manhã chegue.
Enquanto dormiam, todas as coisas da floresta foram sofrendo metamorfoses: as pedras e os tocos viraram peixes e patos; o cesto que a moça tecera na véspera se transformou em onça; a canoa e o pescador também viraram patos. As petras e tocos que não se transformaram deixaram de falar e se tornaram inanimados. Os índios não compreendiam. Seu mundo não era mais o mesmo. A floresta agora estava cheia de ruídos que eles não conheciam.
Só a filha da Cobra Grande não ficou preocupada: aquele mundo era igual ao dela...
Quando acordou e viu brilhar a estrela-d'alva, ela disse ao marido:
- Veja só aquela fagulha maravilhosa na noite. Ela anuncia a chegada da aurora. Vou separar o dia da noite.
Saiu da oca para colher folhas, flores, grãos, cascas de árvore e frutinhas. Num pote colocou argila clara. Ao regressar à aldeia, ajoelhou-se numa esteira e arrumou em volta vários cestos e tabuleiros. Pegou um pilão e começou a esmagar as coisas que tinha colhido na floresta. Depois, fez umas misturas e foi produzindo diferentes tons de azul e verde, mais claros ou mais escuros. Com o urucum* chegou a um vermelho lindo e com o jenipapo* conseguiu um preto profundo, que lhe agradou muito. Estava orgulhosa de suas tintas...
Então pegou um fiapo de palha, enrolou no dedo e lhe disse:
- Você vai ser o cujubim, o pássaro que anuncia o dia.
Pintou a cabeça dele de branco com a argila, e as patas de vermelho, usando a pasta de urucum que acabara de fazer. Depois, deixou-o voar, enquanto dizia:
- Vá... todas as manhãs é você quem vai cantar para anunciar o dia.
Depois, enrolou outro fio no dedo e falou:
- Você sera o inhambu, o pássaro que anuncia a noite.
Em seguida, pegou um cesto cheio de cinzas, que havia recolhido ao atravessar a clareira aberta pelo marido para que eles plantassem. Salpicou de cinzas o pássaro que acabara de criar e o deixou voar, dizendo:
- Vá... você vai cantar ao entardecer, para anunciar que a noite está chegando.
E o pássaro levantou voo, entoando uma melodia doce e triste.
- Vou fazer todas essas cores dançarem e cantarem pela floresta. Vou criar pássaros de todo o tipo, tão bonitos quanto as flores e as frutas.
Começou por uma ave meio esquisita, com um rabo bem comprido e um bico grande, que fez rir todos os índios que estavam olhando. Pintou o pássaro de vermelho e azul e o chamou de arara. A ave parecia mansa e foi pousar num galho bem em frente. Não parara de repetir:
- Arara! Arara!
Para o segundo pássaro, a moça criou um bico ainda maior, e escolheu para ele o verde, o azul e o amarelo. Resolveu chamá-lo de tucano-de-bico-manchado.
Quando criou o pássaro seguinte, resolveu divertir-se um pouco. Colocou na cabeça dele uma crista vermelha muito engraçada. E o cabeça-de-fogo foi se juntar aos outros, sobre um galho. Quando ficava sozinha, a moça olhava muito para o céu e os mil tons de azul, que mudavam de acordo com a altura do Sol, a luz do luar, a chuva ou as nuvens. O azul era sua cor favorita, e ela escolheu o azul mais bonito para criar o manaquim-de-dorso-azul. Para o jacamar, pensou na clareira com todos os seus tons de verde...
Depois foi a vez de outros tucanos, com preto, laranja e amarelo. E do tangará, todo colorido. De saíra, do gaturamo e de pequeninos beija-flores, vermelhos, verdes e azuis. Todos iam se juntar à arara, em cima do galho, e cantavam ao mesmo tempo.
De repente, fez-se completo silêncio. Três homens estavam chegando à aldeia, com o rosto escondido pelas mãos. Eram os três servidores de Tacunha, que vinham pedir perdão a seu senhor. Os pássaros pressentiram um drama. Por isso haviam se calado.
- Vocês desobedeceram à Cobra Grande! - exclamou Tacunha - Abriram o coco e soltaram a noite, que come todas as coisas. Vocês foram avisados, e agora estão perdidos. A filha dela vai transformar vocês em macacos. E serão condenados a pular de galho até o final dos tempos.
E até hoje os índios sabem que são os servidores de Tacunha e os reconhecem por uma risca amarela que certos macacos têm nas costas, lembrando a resina que se derramou sobre os três quando eles abriram o coco de tucumã...
- O mito da Criação da Noite é uma lenda inspirada nos contos indígenas da mitologia tupi-
- * Tucumã é uma espécie de palmeira;
- * Urucum: tintura vermelha obtida a partir da cera que recobre as sementes do urucunzeiro.
- * Jenipapo: tintura quase preta (com tons azuis, roxos, e marrons), obtida a partir da polpa do jenipapeiro;
- Guarani - Walmiri-atroari (Amazonas e Roraima);
Fonte: livro A Amazônia: Mitos e Lendas, de Danièle Küss e Jean Torton, tradução de Ana Maria Machado.
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